terça-feira, 12 de agosto de 2014

Levantamentos mostram perseguição contra religiões de matriz africana no Brasil

Conceição de Lissá já avaliava os estragos causados pelo incêndio, quando, novamente, foi pega de surpresa. Sutilmente, o cheiro de gasolina indicava que a faísca que tinha iniciado a destruição do quarto onde guardava roupas de santo e outros artigos usados em cerimônias não fora acionada por um curto-circuito, como até então supunha.
Dandara Tinoco, O Globo - A mãe de santo entendeu que alguém havia destruído o local de forma voluntária e procurou a polícia. Oito anos e oito ataques depois, ainda não sabe quem a agrediu e continua a ser vitimada. O último episódio ocorreu mês passado, quando outra parte do terreiro, em Duque de Caxias, foi novamente incendiada.
- A minha casa de santo se tornou um quilombo. Aqui falamos africano, cantamos músicas, vestimos roupas típicas e sofremos perseguição. Terei de instalar câmeras e alarmes, para garantir a segurança que o Estado não me dá. Mas temos de resistir - protesta a mãe de santo.
O relato de Conceição é repetido na voz de outros muitos adeptos de religiões de matriz africana.
Fiéis do candomblé e da umbanda - que somavam quase 600 mil pessoas no Censo de 2010 - são os mais atacados no Brasil. De janeiro a 11 de julho deste ano, eles foram vítimas em 22 das 53 denúncias de intolerância religiosa recebidas pelo Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, segundo levantamento feito a pedido do GLOBO. Em 2013, foram 21 registros feitos por adeptos de religiões afro-brasileiras, em um total de 114. Mas o segmento também foi o que somou mais agredidos nesse ano.
O estudo “Presença do axé - Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”, de pesquisadores da PUC-Rio, também contabilizou as agressões aos frequentadores de culto afro-brasileiros. Das 840 casas listadas, 430 foram alvo de discriminação. Mais da metade (57%) em locais públicos. Entre esses casos, a maior parte ocorreu nas ruas (67%).
- As denúncias à secretaria são encaminhadas a defensorias públicas, promotorias e delegacias. E os dados estatísticos servem de instrumento de orientação das nossas políticas - afirma Elias Vieira de Oliveira, coordenador geral de promoção de diversidade religiosa da SDH.
- Em março deste ano, foi empossado o Comitê Nacional da Diversidade Religiosa, que tem representantes de matriz africana. As agressões já estão na pauta do grupo.
Se por um lado as denúncias trazem indícios de que é crescente a violência contra fieis do candomblé e umbandistas, por outro, mostram também um aumento da mobilização contra a intolerância. O movimento vem se fortalecendo desde 2008, quando quatro pessoas invadiram o Centro Cruz de Oxalá, no Catete. Na ocasião, imagens foram quebradas e fiéis xingados. Foi criada então a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), formada por grupos da sociedade civil e religiosos de diferentes crenças.
Em junho, uma polêmica decisão do juiz titular da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, que negou pedido de retirada de vídeos do YouTube gravados durante cultos evangélicos, com mensagens de intolerância contra religiões afro-brasileiras, foi o gatilho para novas manifestações. O magistrado dizia, na sentença, que candomblé e umbanda não são religiões. Ele acabou voltando atrás, mas não conseguiu apaziguar os ânimos. Dias depois, representantes de diferentes estados viajaram a Brasília para cobrar de autoridades o respeito ao direito de crença.
- Esses casos recentes reacenderam a autoestima dos adeptos de religiões de origem africana. Além disso, causaram um resgate da identidade religiosa, porque têm levado essa população a se assumir e buscar apoio da sociedade - analisa o babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da CCIR, que espera reunir cem mil pessoas na 7ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, dia 21 de setembro, na orla de Copacabana.
Grupo foi expulso de comunidade 
Os casos denunciados à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência vão de insultos à violência física, passando por invasões de terreiros e até recusa de fazer negócios. Foi o que ocorreu com Fábio Oliveira, frequentador do Ilê Axé Oxum.
- Compramos um terreno em uma comunidade em Campo Grande para erguer um barracão. Na semana seguinte, fomos informados de que o tráfico local não queria ‘macumbeiros’ ali. Tivemos de desistir do espaço - conta.
O grupo de Oliveira hoje se reúne com frequência no Parque Ecológico dos Orixás, em Magé. O local foi criado há dez anos, na tentativa de evitar a exposição dos praticantes de candomblé e umbanda. Todos os fins de semana, a área, de 60 mil metros quadrados, recebe dezenas de associados à União Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros. Vestidos de branco, os frequentadores se reúnem em cantorias com atabaques e deixam oferendas aos pés de imensas estátuas de orixás e em uma cachoeira.
Diferentemente de Oliveira, grande parte dos frequentadores do parque não quer ser identificada e não se deixa fotografar. Testemunhos de quem aceita conversar dão pistas do que leva ao acanhamento.
- Trabalho em um banco e tive uma chefe que descobriu que eu batia tambor. A partir dali, ela começou a me perseguir, e tive de pedir transferência - conta uma umbandista.
Professor do Departamento de Ciência da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o cientista social Silas Guerriero vê um aumento da intolerância no Brasil nos anos recentes:
- As intolerâncias mexem com a sociedade de maneira geral, quando um grupo se acha superior ao outro. No Brasil, sempre houve uma certa tolerância religiosa. O que tem acontecido nos últimos anos é que o pentecostalismo se coloca de maneira muito fundamentalista. E esse fundamentalismo evangélico tem levado às situações de violência que estamos vendo.
Segundo números do Disque 100, evangélicos são apontados em nove dos 22 registros de intolerância contra adeptos do candomblé e da umbanda. Mas, para o diretor da Associação dos Pastores e Ministros Evangélicos do Brasil, Carlos de Oliveira, os neopentecostais são acusados de maneira injusta.
- Os evangélicos são pacíficos. Nunca presenciei um pastor dizendo “vamos incendiar um terreiro, vamos quebrar suas imagens”. O que se fala é “vamos orar para que Deus toque o coração deles”. - defende o pastor da Assembleia de Deus. - Sempre que invadem uma igreja católica ou um terreiro, os evangélicos são os primeiros suspeitos. Mas, muitas vezes, os agressores não são da religião
Ataques ocorrem por essas serem religiões vindas de segmentos marginalizados’, diz antropólogo
A discriminação de religiões de origem africana nasce da tentativa de inferiorizar negros, índios e mestiços. A explicação é do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, professor da Universidade de São Paulo (USP), que relaciona o preconceito ao fato de essas crenças terem como precursores populações marginalizadas. Ele detalha a trajetória evolução histórica da intolerância religiosa no Brasil. No período da escravidão, negros africanos foram obrigados a se converter ao catolicismo. Mais tarde, candomblé e umbanda viraram caso de polícia e chegaram a ser associados a doenças mentais. “É como se fosse uma artilharia pesada contra alguém que tem poucos recursos”, afirma o autor de “Candomblé e Umbanda — Caminhos da devoção brasileira”.
Eis a entrevista.
Os ataques às religiões de matriz africana são históricos, certo?
Esses ataques ocorrem por essas serem religiões vindas de segmentos tradicionalmente marginalizados: de populações negras, indígenas e depois mestiças. É como se as religiões fossem exemplos de como essas populações são inferiores, na ótica de uma sociedade elitista, branca. Sendo inferiores, tudo que elas produzem em termos de cultura não era considerado cultura no mesmo sentido que a cultura europeia, no passado.
Mesmo as primeiras pesquisas acadêmicas sobre o tema classificaram religiões monoteístas como superiores e politeístas como inferiores. Hoje, há uma percepção de que superamos essa visão. Mas, vejo que ela não foi vencida quando um juiz, ao tratar de ataques virtuais às crenças afro, afirma que umbanda e candomblé não são religiões. É um caso típico de um pensamento evolucionista, que também existe no senso comum. Cada um tem sua religião e não devemos contestar isso. Mas, não podemos considerar que uma pessoa com uma religião destrate pessoas de outras religiões. E que o Estado não constitua mecanismos que impeçam isso. Muitas vezes, o Estado é omisso em relação a essa questão.

Como esse foi a evolução histórica desse preconceito?
No período da escravidão, Estado e Igreja eram a mesma coisa. As religiões afro eram consideradas heresia e, depois, no século XX, viraram caso de polícia. Sacerdotes foram acusados de enganar a população através de oráculos. E essas crenças foram associadas também a doenças mentais, a sintomas de esquizofrenia, de alienação. Mas o samba também era proibido, e a capoeira, considerada vadiagem, o que mostra como esses símbolos eram discriminados. No passado, embora muitas vezes a população tivesse preconceito, ela se valia dessa religiosidade muitas vezes. Mesmo sem aderir ao candomblé ou à umbanda, algumas pessoas frequentavam terreiros e centros como cliente ocasional, para consultas ou despachos. Quando as religiões neopentecostais começam a existir no Brasil, se inicia a percepção de que há adeptos a serem convertidos. E não só em termos numéricos, mas até mais num plano simbólico, já que orixás e caboclos são símbolos poderosos.

E a figura do Exu, usada com frequência nos ataques à umbanda e ao candomblé?

O Exu é um dos símbolos que sofre uma releitura. Na religião africana, o Exu é associado aos caminhos e à fertilidade. É representado por um montículo de terra com um pênis ereto, mas não tem nada de erótico, no sentido ocidental da palavra. Quando a colonização europeia chegou à África, essa imagem foi associada ao demônio cristão, que também estava ligado à sexualidade desenfreada. Foi encarado como a prova de que o demônio existia fora da Europa. Na tradição ocidental, cristã, existem dois princípios: o bem e o mal. E o Exu foi associado ao mal. Mas, na umbanda, o Exu também atende pedidos de bem. Então, ele não pode ser o demônio cristão.
Já houve casos de “releituras” de representações culturais de origem africana, como os “bolinhos de Jesus” substituindo o acarajé e ainda a “capoeira de Cristo" cujas letras não citam orixás. Qual o peso disso?
Isso é muito grave. Essas manifestações fazem parte do cotidiano da população. Quando as igrejas neopentecostais se apropriam disso, e afastam essas representações de elementos africanos, é como se fizessem uma assepsia étnica racial. O acarajé, por exemplo, é um alimento religioso. Com ele, baianas saúdam Iansã. Dizer que essa comida pertence a Jesus é, de certa maneira, tentar descapitalizá-la dos valores de origem.

Há outros preconceitos associados à discriminação dessas religiões, como homofobia e racismo?
Sim. Historicamente, as religiões afro foram as mais abertas à diversidade de gênero e de sexualidade. Há mulheres no topo da carreira, diferentemente de outras religiões. E há outra noção de pecado. O sistema religioso docandomblé e da umbanda não discriminam essas pessoas. Então, quando essas religiões começam a ser atacadas, um dos recursos usados é associar as religiões à homossexualidade. Em relação à questão racial, essas religiões têm origem africana então estão associadas aos negros, que historicamente também sofrem preconceito.

Como avalia a reação dos adeptos das religiões de matriz africana a esses ataques?
Duas décadas atrás, não existia reação ou ela era muito tímida. E o segmento afro-brasileiro tinha muitas divisões internas. Mas, conforme os ataques foram crescendo e ficando perigosos, houve uma tentativa desses grupos se organizarem. Criaram movimentos com adeptos de diferentes religiões e que começaram a dar assessoria jurídica às vítimas. Hoje todos os estados têm movimentos de combate a intolerância. E há uma reação muito mais forte de tentar frear esses ataques. Mas esses ataques são feitos de forma muito densa e sistemática. É como se fosse uma artilharia pesada contra alguém que tem poucos recursos.

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