segunda-feira, 14 de julho de 2014

“Apenas a porta-voz”

O que lula pensa de sua sucessora é justamente aquilo que ele mais gostaria de esconder
Num lance de gênio político, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva transformou o vinagre em vinho. Ao mesmo tempo, num inacreditável lapso de discurso, confessou o que pensa a respeito de sua sucessora – e o que ele pensa é justamente o que ele mais gostaria de esconder.
Comecemos pelo lance de gênio. Com sua oratória instintiva e demolidora, Lula transubstanciou em elogio consagrador os xingamentos insultuosos que a torcida gritou contra a pessoa de Dilma Rousseff, na abertura do jogo de estreia da Seleção Brasileira, no Itaquerão, em São Paulo. Como os presentes ao estádio eram quase todos abastados, playboys, janotas, madames, colunáveis, celebridades, mauricinhos, almofadinhas, coxinhas e dondocas, além de uns poucos aficionados do futebol, Lula disparou contra o que chamou, com solerte ironia, de “a parte bonita da sociedade”. Em frases curtas e duras, puxou a orelha de todo mundo: “Os que diziam que o Brasil passaria vergonha na Copa deram o maior vexame”.
Do ponto de vista da polidez que se espera da tal “classe média alta” em eventos públicos, Lula tem toda a razão. Se a nata dos brasileiros se manifesta com o palavrea­do dos proxenetas e traficantes, e vomita termos chulos para enxovalhar os que representam legitimamente as instituições, não restam esperanças para a civilidade brasileira. Se esse é o padrão de comportamento que prevalecerá na campanha, se esse é o exemplo que nos dão os endinheirados, descambamos todos para o império da baixaria generalizada.
Foi por aí que Lula começou a construir sua brilhante inversão de jogo. “Respeito, educação, a gente aprende na casa da gente”, disse. Em seguida, sugeriu que, se os endinheirados não têm compostura, ainda resta uma esperança para o país. Lula tem uma saída. “Duvido que trabalhadores tivessem coragem de falar 1% do que foi falado.” Portanto, a saída é votar nos que falam em nome dos supramencionados “trabalhadores”.
A partir desse ponto, a proeza de reconverter o vinagre (os palavrões em uníssono retumbante contra Dilma) em vinho (dividendos eleitorais para o PT) ficou fácil. Na lógica do discurso do ex-presidente – ou, pelo menos, do discurso que ele vocifera quando se irrita –, as tais “elites” só trazem atraso ao Brasil. Logo, se elas se insurgem em desaforos contra Dilma Rousseff, ponto para Dilma Rousseff. As “elites” podem até não saber por que xingam, mas ele, Lula, sabe muito bem por que Dilma é açoitada com tanta deseducação: é pelos méritos que ela tem.
Isso posto, a conclusão é mais que óbvia, tão óbvia que Lula nem precisa se dar ao trabalho de dizê-la: se você quer mudar o Brasil, dê as costas aos coxinhas que foram a Itaquera para empenhar suas cordas vocais no baixo calão – e reeleja Dilma. Se você é bem-educado, rompa com a grã-fi­nagem boquirrota – e vote no PT. Nada poderia incendiar com mais paixão os ânimos dos cabos eleitorais do Palácio do Planalto. Toque de gênio.
Foi por aí que o Luiz Inácio ajudou Dilma Rousseff a fazer de seu limão uma limonada anabolizante. A operação teria sido perfeita se Lula parasse por aí. Mas ele continuou falando. Sejamos mais precisos: exatamente como a multidão perfumada que baixou no Itaquerão em procissões de ônibus de ar-condicionado, ele não sabe bem a hora de calar. Vira e mexe, Lula passa do ponto e, aí, confessa até mesmo os segredos sobre os quais ninguém lhe perguntou nada.
Foi o que aconteceu desta vez. Empolgado com o magnetismo sonoro que sua voz exerce sobre as plateias que lhe prestam reverência, o velho líder sindical saiu amaldiçoando a imprensa, num de seus bordões mais recorrentes, e chamou a briga para si. Mexeu com Dilma, mexeu com ele – não porque Dilma seja grandiosa, mas por ser, talvez, pequena demais, incapaz de se defender sozinha. Nessa passagem, num ato falho típico de manual de psicanálise, Lula proclamou o que preferiria esconder: “Dilma é apenas a nossa porta-voz, que estará à frente da campanha”.
Atenção para o advérbio “apenas”. Nas palavras dele, Dilma não é nada além de uma “porta-voz”. Na melhor das hipóteses, ele parece vê-la como a sua bastante procuradora, de lealdade inabalável, aquela que ficou tomando conta de seu mandato enquanto ele saiu de férias por uns tempos. Quer dizer: Dilma ficou de inquilina no Alvorada não como chefe de Estado para valer, não como quem decide, comanda, inspira e conduz. Está lá apenas como porta-voz. O que poderia ser mais claro do que isso?

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