segunda-feira, 25 de março de 2013

O caminho aberto por Jesus

(Pagola, José Antonio, O caminho aberto por Jesus, Vozes, v2012, p.341-347)
ESCÂNDALO E LOUCURA 
Os primeiros cristãos sabiam. Sua fé num Deus crucificado só podia ser vista como um escândalo e uma loucura. disso. Quem teve a ideia de dizer algo tão absurdo e horrendo de Deus? Nunca religião alguma se atreveu a confessar algo semelhante. 
Sem dúvida, a primeira coisa que todos nós descobrimos no Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até à morte pelas autoridades religiosas e pelo poder político, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da justiça. Mas, precisamente ali, nessa vítima inocente, nós, seguidores de Jesus, vemosDeus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. 
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todoêxito político e de toda auréola religiosa, Deus se nos revela, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor e somente amor. Por isso padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte. 
Este Deus crucificado não é o Deus poderoso e controlador, que tratade submeter seus filhos e filhas buscando sempre sua glória e honra. É um Deus humilde e paciente, que respeita até o fim nossa liberdade, mesmo que nós abusemos sempre de novo de seu amor. Ele prefere ser vítima de suas criaturas a ser seu verdugo. 
Este Deus crucificado não é tampouco o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, que ainda continua perturbando a consciência de não poucos crentes. Deus não responde ao mal com o mal. "Em Cristo está Deus, não levando em conta as transgressões dos seres humanos, mas reconciliando o mundo consigo" (2Cor 5,19). Enquanto nós falamos de méritos, culpas ou direitos adquiridos, Deus está nos acolhendo a todos com seu amor insondável e seu perdão. 
Este Deus crucificado se revela hoje em todas as vítimas inocentes. Está na cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes: as crianças famintas e as mulheres maltratadas, os torturados pelos verdugos do poder, os explorados por nosso bem-estar, os esquecidos por nossa religião. 
Nós cristãos continuamos celebrando o Deus crucificado, para não esquecer nunca o "amor louco" de Deus pela humanidade e para manter viva a lembrança de todos os crucificados. Ê um escândalo e uma loucura. No entanto, para nós que seguimos a Jesus e cremos no mistério redentor que se encerra em sua morte, é a força que sustenta nossa esperança e nossa luta por um mundo mais humano. 
O QUE FAZ DEUS NUMA CRUZ? 
De acordo com o relato evangélico, os que passam diante de Jesus crucificado sobre a colina do Gólgota zombam dele e, rindo de sua impotência, lhedizem: "Se és Filho de Deus, desce da cruz': Jesus não responde à provocação. Sua resposta é um silêncio carregado de mistério. Precisamente porque Ele é Filho de Deus, permanecerá na cruz até sua morte. 
As perguntas são inevitáveis: Como é possível crer num Deus crucificado pelos seres humanos? Damo-nos conta do que estamos dizendo? O que faz Deus numa cruz? Como pode subsistir uma religião fundada numa concepção tão absurda de Deus? 
Um "Deus crucificado" constitui uma revolução e um escândalo que nos obriga a questionar todas as ideias que nós, os seres humanos, nos fazemos da divindade. O Crucificado não tem o rosto nem os traços que as religiões atribuem ao Ser supremo. 
O "Deus crucificado" não é um ser onipotente e majestoso, imutável e feliz, alheio ao sofrimento dos seres humanos, mas um Deus impotente e humilhado, que sofre conosco a dor, a angústia e até a própria morte. Com a cruz, ou termina nossa fé em Deus ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que, encarnado em nosso sofrimento, nos ama de maneira incrível. 
Diante do Crucificado começamos a intuir que Deus, em seu mistério último, é alguém que sofre conosco. Nossa miséria o afeta. Nosso sofrimento o salpica. Não existe um Deus cuja vida transcorre, por assim dizer, à margem de nossas penas, lágrimas e desgraças. Ele está em todos os Calvários de nosso mundo. 
Este "Deus crucificado" não permite uma fé frívola e egoísta num Deus posto a serviço de nossos caprichos e pretensões. Este Deus nos coloca olhando para o sofrimento e o abandono de tantas vítimas da injustiça e das desgraças. Com este Deus nos encontramos quando nos aproximamos de qualquer crucificado. 
Nós cristãos continuamos dando todo tipo de rodeios para não topar com o "Deus crucificado". Aprendemos, inclusive, a levantar nossoolhar para a cruz do Senhor, desviando-o dos crucificados que estão diante de nossos olhos. No entanto, a maneira mais autêntica de celebrar a paixão do Senhor é reavivar nossa compaixão para com os que sofrem. Sem isto, dilui-se nossa fé no "Deus crucificado" e abre-se a porta a todo tipo de manipulações. 
DEUS NÃO É UM SÁDICO 
Não são poucos os cristãos que entendem a morte de Jesus na cruz como uma espécie de "negociação" entre Deus Pai e seu Filho. Segundo esta maneira de entender a crucifixão, o Pai, justamente ofendido pelo pecado dosseres humanos, exige para salvá-los uma reparação, que o Filho lhe oferece entregando sua vida por nós. 
Se fosse assim, as consequências seriam gravíssimas. A imagem de Deus Pai ficaria radicalmente pervertida, porque Deus seria um ser justiceiro, incapaz de perdoar gratuitamente; uma espécie de credor implacável, que não pode salvar-nos se não for saldada previamente a dívida contraída com Ele. Seria difícil evitar a ideia de um Deus "sádico': que encontra no sofrimento e no sangue um "prazer especial", algo que lhe agrada de maneira particular e o leva a mudar de atitude para com suas criaturas. 
Esta maneira de apresentar a cruz de Cristo exige uma profunda revisão. Na fé dos primeiros cristãos, Deus não aparece como alguém que exige previamente sangue para que sua honra fique satisfeita, e Ele possa assim perdoar. Pelo contrário, Deus envia seu Filho somente por amor e oferece a salvação quando ainda éramos pecadores. Jesus, por sua vez, não aparece nunca procurando influir sobre o Pai com seu sofrimento, a fim de compen­sá-lo e assim obter dele uma atitude mais benévola para com a humanidade. 
Então, quem quis a cruz e por quê? Certamente não o Pai, que não quer que se cometa crime algum, e menos ainda contra seu Filho amado, e sim os seres humanos, que rejeitam Jesus e não aceitam que Ele introduza no mundo um reinado de justiça, de verdade e de fraternidade. O que o Pai quer não é que matem seu Filho, mas que seu Filho viva seu amor ao ser humano até às últimas consequências. 
Deus não pode evitar a crucifixão, porque para isso deveria destruir a liberdade dos seres humanos e negar-se a si mesmo como Amor. O Pai não quer o sofrimento e o sangue, mas não se detém nem sequer diante da tragédia da cruz e aceita o sacrifício de seu Filho querido unicamente por amor insondável para conosco. Assim é Deus. 
MORREU COMO HAVIA VIVIDO 
Como viveu Jesus suas últimas horas? Qual foi sua atitude no momento 
da execução? Os evangelhos não se detêm a analisar seus sentimentos. Simplesmente lembram que Jesus morreu como havia vivido. Lucas, por exemplo, quis destacar a bondade de Jesus até o final, sua proximidade aos que sofrem e sua capacidade de perdoar. De acordo com seu relato, Jesus morreu amando. 
No meio da multidão que observa a passagem dos condenados a caminho da cruz, algumas mulheres se aproximam de Jesus chorando. Não podem vê-lo sofrer assim. Jesus "volta-se para elas" e as olha com a mesma ternura com que as havia olhado sempre: "Não choreis por mim, chorai por vós e por vossos filhos". Assim caminha Jesus para a cruz: pensando mais naquelas pobres mães do que em seu próprio sofrimento. 
Faltam poucas horas para o final. Da cruz só se ouvem os insultos de alguns e os gritos de dor dos justiçados. De repente, um deles se dirige a Jesus: "Lembra-te de mim': A resposta de Jesus é imediata: "Asseguro-te: hoje estarás comigo no paraíso': Ele sempre fez a mesma coisa: suprimir medos, infundir confiança em Deus, transmitir esperança. E continua fazendo isso até o final. 
O momento da crucifixão é inesquecível. Enquanto os soldados o vão pregando no madeiro, Jesus diz: "Pai, perdoai-Ihes, porque não sabem o que estão fazendo': ssim é Jesus. Assim viveu sempre: oferecendo aos pecadores o perdão do Pai, mesmo que não o mereçam. De acordo com Lucas, Jesus morre pedindo ao Pai que continue abençoando os que o crucificam,que continue oferecendo seu amor, seu perdão e sua paz a todos, inclusive aos que o estão matando. 
Não é estranho que Paulo de Tarso convide os cristãos de Corinto a descobrir o mistério que se encerra no Crucificado: "Em Cristo Deus não está levando em conta as transgressões dos seres humanos, mas reconciliando o mundo consigo". Assim está Deus na cruz: não nos acusando de nossos pecados, mas oferecendo-nos seu perdão. 
COM OS CRUCIFICADOS 
O mundo está cheio de igrejas cristãs presididas pela imagem do Crucificado, e está cheio também de pessoas que sofrem, crucificadas pela desgraça, pelas injustiças e pelo esquecimento: doentes privados de cuidado, mulheres maltratadas, anciãos ignorados, meninos e meninas violentados, emigrantes sem documentos nem futuro. E gente, muita gente afundada na fome e na miséria no mundo inteiro. 
É difícil imaginar um símbolo mais carregado de esperança do que essa cruz plantada pelos cristãos em toda parte: "memória" comovente de um Deus crucificado e lembrança permanente de sua identificação com todos os inocentes que sofrem de maneira injusta em nosso mundo. 
Essa cruz, erguida entre as nossas cruzes, nos lembra que Deus sofre conosco. Deus se condói da fome das crianças de Calcutá, sofre com os assassinados e torturados do Iraque, chora com as mulheres maltratadas diariamente em seu lar. Não sabemos explicar a raiz última de tanto mal. E, mesmo que o soubéssemos, não nos adiantaria muito. Só sabemos que Deus sofre conosco. Não estamos sós. 
Mas os símbolos mais sublimes podem ficar pervertidos se não recuperarmos sempre de novo seu verdadeiro conteúdo. O que significa a imagem do Crucificado, tão presente entre nós, se não vemos marcados em seu rosto o sofrimento, a solidão, a tortura e a desolação de tantos filhos e filhas de Deus? 
Que sentido tem trazer uma cruz sobre nosso peito se não sabemos carregar a mais pequena cruz de tantas pessoas que sofrem junto a nós? O que significam nossos beijos no crucificado se não despertam em nós o carinho, a acolhida e a aproximação aos que vivem crucificados? 
O Crucificado desmascara como ninguém nossas mentiras e covardias. A partir do silêncio da cruz, Ele é o juiz firme e manso do aburguesamento de nossa fé, de nossa acomodação ao bem-estar e de nossa indiferen­ça diante dos que sofrem. Para adorar o mistério de um Deus crucificado não basta celebrar a Semana Santa; é necessário, além disso, aproximar-nos mais dos crucificados, semana após semana. 



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