segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Libertar o Islã do islamismo

É necessário pôr em ação uma rede de intelectuais e artistas muçulmanos liberais contra a onda wahabita e salafista. Isso está transformando o Islã e levando as suas populações para o pior, para a regressão, o obscurantismo, o fechamento, o fanatismo.
Escritor e poeta, Abdelwahab Meddeb nasceu em Túnis, em 1946. Ele vive na França, leciona literatura comparada naUniversidade Paris-X e é apresentador do programa Cultures d'islam, no canal France Culture. 
Em 2012, foi convidado pela Universidade Livre de Berlim a ocupar a cátedra Samuel Fischer Guest Professorship for Literature. É autor de inúmeras obras, incluindo La Maladie de l'Islam (Ed. Seuil, 2002), Contre-prêches (Ed. Seuil, 2006), Pari de civilisation (Ed. Seuil, 2009) e Printemps de Tunis, la métamorphose de l'histoire (Ed. Albin Michel, 2011).
 Eis o texto de Abdelwahab Meddeb
Em Dhaka, assim como em Chittagong, segunda maior cidade de Bangladesh, eu constato que é necessário pôr em ação uma rede de intelectuais e artistas muçulmanos liberais para defender o nosso país contra a onda wahabita e salafista. Esta última está transformando o Islã e levando as suas populações para o pior, para a regressão, o obscurantismo, o fechamento, o fanatismo.
É surpreendente descobrir que os problemas são os mesmos no Marrocos e naqueles países da Ásia meridional. Toda a faixa horizontal que desce para os trópicos aos quais pertencemos está contaminada e corre o risco de cambalear para uma uniformização devastadora.
Essa situação não é fruto do acaso; é o resultado de uma política pensada, que mostrou coerência, rigor, vitalidade. Produz efeitos que transformam a realidade, depois de uma ação duradoura, que iniciou após a primeira crise do petróleo de 1974. Uma crise que fez com que fosse derramado sobre a Arábia Saudita o maná petrolífero, parte do qual foi metodicamente usado em favor da propaganda da fé wahabita em todo o mundo.
A partir daquele momento, o Islã continuou mudando, da Indonésia ao Ocidente magrebino. Está sofrendo uma uniformização e uma universalização do culto ao estilo wahabita simplificador, excluindo a complexidade teológica para favorecer a constância da prática, sob a égide do Deus único, transformado em ser exclusivo, despojado de qualquer mediação; a tal ponto que se chega à adoração de um ídolo ameaçador, tirânico, ainda mais assustador porque permanece ausente, inacessível, irrepresentável na sua própria imanência. Tal concepção reduz Deus a um sentinela perfeccionista, que vigia você em cada gesto seu, que deve se conforme à norma, que controla se você transgride.
Para lutar contra esse perigo, se não for tarde demais, precisamos agir sobre os quatro pontos que têm sido o alvo preferido dos wahabitas.
Acima de tudo, o Islã vernacular, aquele que gira em torno do culto dos santos, que recupera o conteúdo dionisíaco e e trágico, isto é, que leva a sério a cena que ativa a catarse, a purificação através da qual é evacuado o excesso cujo peso jaz sobre as almas dos indivíduos e das comunidades que eles constituem. Essa cena vernacular recupera materiais que provêm da era pré-islâmica.
A origem dessa matéria remonta a muito longe no tempo; ela atualiza com sua verve o antigo que, em Bangladesh, é indiano; se conecta com vestígios históricos hindus, budistas, que dão uma forma de solidariedade entre o 'âlim("sábio") e o pandit, entre o sufi ("místico") e o yogi. Assim como na Tunísia para o conteúdo pertencente aoMediterrâneo, aos berberes, à judeidade, à latinidade, à África Subsaariana, há muitos elementos ancestrais que interferem, se cruzam, se tecem para serem enquadrados na crença islâmica.
O segundo ponto diz respeito à abordagem doutrinal e ao procedimento jurídico da forma como se adaptou e se articulou com relação ao direito positivo. É para sufocar esses particularismos que a onda wahabita gostaria de afundar a memória hanafita [tendência liberal e racionalista do Islã] em Bagladesh e a memória malekita [do imãMalik ib Anas (711-795), teólogo e legislador que viveu em Medina] no Magrebe.
Essas memórias, apesar da sua carência operacional, carregam consigo uma complexidade e uma propensão ao debate que não suporta a esquematização que concentra a sua energia na ortopraxia às custas de qualquer outra questão.
Chego ao terceiro ponto, que requer um retorno ao conteúdo teológico e sufi que envolve a especulação e a interrogação. Para reviver esse conteúdo, é preciso, antes, superar tanto a adesão a um dos quatro ritos sunitas, quanto a separação sunitas/xiitas. Também é oportuno se libertar da restrição da ijmâ', do consenso que cristalizou o edifício constituído pela tradição, e vincular-se novamente com o ikhtilâf', o desacordo entre os ulemás. Este último cria polifonia, escancara as portas do ijtihâd, aquele esforço de interpretação que suscita a controvérsia e mantém viva a diversidade das opiniões, o que relativiza o acesso à verdade. Essa palavra-chave, o ikhtilâf, resplandece no livro jurídico do cádi filósofo Ibn Rushd (Averróis, 1126-1198), cujo título pode ser traduzido como: "Aqui começa aquele que faz o esforço de interpretação, lá termina aquele que prescinde dele".
Nessa fase, também é necessário ampliar o âmbito das nossas referências alcançando o corpus filosófico e o corpus poético que foram transmitidos ao longo dos séculos pelas grandes línguas do Islã, principalmente o árabe e o persa; porque encontramos através das argúcias desses textos as primícias, os anúncios, os sinais precursores das lições liberais que respondem de forma eficaz aos problemas de hoje. Pode-se, por exemplo, preencher com eles a nossa deficiência em pensar sobre o problema da alteridade.
Em Bangladesh, há um problema na relação do muçulmano com o outro, budista. Os acontecimentos da atualidade nos referem ataques a lugares budistas por parte de bandos salafistas que queimam os templos e destroem ou decapitam estátuas de Buda.
É o que aconteceu recentemente, no dia 29 de setembro, na cidade de Ramu e nos vilarejos vizinhos, perto de Cox's Bazar, no Golfo de Bengala. Onze templos de madeira foram reduzidos a cinzas, dois dos quais remontam a três séculos. E essa violência se propagou para o nosso país, mais perto de Chittagong, onde a presença budista é relativamente forte.
Depois, foi a vez de Ukhia, de Teknaf, ainda no sudeste do país, não muito longe da fronteira com a Birmânia.
A ofensa à harmonia entre as comunidades feriu aqui muitos indivíduos pertencentes ao ambiente dos muçulmanos liberais. Essa negação da alteridade budista suscitou um poema de protesto que restaura a glória ao Buda escrito por Kaiser Haq, um dos poetas com quem eu me encontrei em Dhaka. Durante um encontro de leitura pública, me lembrei de uma grande quantidade de evocações budistas na tradição islâmica em autores medievais.
Todos esses autores dos séculos X e XI revelam ser muito mais abertos à alteridade, mais curiosos com relação ao outro, mais aptos a ouvir a diferença, mais pertinentes a captar o funcionamento da crença estrangeira, na singularidade dos seus ritos e das suas representações, dos nossos contemporâneos salafistas e wahhabis que querem nos impor a sua visão fanática e exclusiva. Depois dessa memória, a leitura do poema de Kaiser Haqadquiriu uma franca evidência que reforçou a convicção dos ouvintes presentes na diversidade das suas opiniões.
Chego, enfim, ao último ponto, que recomenda a articulação do nosso discurso com o pensamento moderno e pós-moderno, da forma como ele se expressou a partir do século XVIII, de Rousseau e Kant a Karl Popper e Jacques Derrida, passando por John Stuart Mill e tantos outros, uma articulação que defende a abertura e a liberdade, que usa a arma da crítica e da desconstrução de uma herança que só vale quando continua sendo portada como rastro constantemente interrogado.
A assimilação de tal pensamento também nos restitui a complexidade e nos reorienta para a interrogação, nos afasta das respostas prontas. São essas condições que nos levam no caminho da liberdade e do reconhecimento daquele que não compartilha nem as nossas convicções, nem a nossa crença.
Honrando esses quatro pontos (detestados pelos salafistas), seremos capazes de construir um discurso alternativo, destinado a combater as afirmações wahabitas, a refutá-las e a rejeitar o seu projeto. Trata-se de um "contradiscurso", nas palavras usadas por um pensador bengalês, o professor Imtiaz Ahmed, com o qual eu participei de uma conversa pública no Senate Hall da Universidade de Dhaka, diante de um público variado e atento, composto tanto por "seculares", quanto por islamistas convictos e por outros de aspecto salafista. E a discussão com o público depois das nossas falas foi construtiva, cordial.
Depois desse encontro, foram lançadas as base para avançar nessa via alternativa sobre a qual deveria prosseguir o produto das nossas trocas, que poderiam ser facilitadas pela constituição de uma rede, que poderia tecer a teia dos liberais muçulmanos, da Indonésia ao Magreb, e em toda parte do mundo, e encorajá-los a se organizarem para que os seus países não sejam uma presa fácil para as garras islamistas.

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