segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A próxima crise: O mundo pode estar prestes a entrar numa era de insegurança alimentar permanente


(Carta Capital - por Antonio Luiz M. C. Costa) - Daqui a não muito tempo, a humanidade poderá vir a ter saudades dos bons tempos dos choques do petróleo, dos colapsos bancários de 2008 em Wall Street e da atual embrulhada europeia. Uma crise alimentar de longa duração, capaz de fazer muito mais vítimas em muito mais países, está a caminho. Seráo resultado quase inevitável da combinação da disparada da demanda por carne das classes médias de países em desenvolvimento, da febre dos biocombustíveis, do crescimento demográfico, do esgotamento de combustíveis e fertilizantes, do aquecimento global e da importância crescente da especulação com alimentos, não necessariamente nessa ordem.
Neste ano de 2012, os EUA enfrentam sua pior seca desde 1956, pelo menos. Talvez a maior desde a Dust Bowl dos anos 1930, retratada por John Steinbeck em As Vinhas da Ira. Afeta dois terços do país e metade do seu território foi incluído nas "áreas de desastre" agrícola. Os prejuízos às safras estadunidenses de milho e soja, que abastecem quase a metade do comércio internacional desses produtos, fizeram seus preços baterem recordes nas bolsas globais e impulsionarem os preços das rações e das carnes.

Não é um problema isolado, pois as safras da Rússia e Ucrânia também foram prejudicadas por temperaturas extremas, enchentes e secas. As exportações russas de trigo em julho de 2012 foram 25% inferiores àquelas do mesmo mês do ano passado e de 6 milhões a 7 milhões de toneladas podem ter sido perdidas. Na India e Tailândia, as chuvas trazidas pelas monções são 15% acima da média e se espera um aumento de 10% nos preços do arroz. Na África, a pior seca dos últimos 60 anos ameaça de fome 18 milhões no Sahel (Senegal, Mauritânia, Mali, Níger e Chade) e 13 milhões no Chifre da África (Somália, Etiópia, Eritreia, Quênia e Uganda). No Brasil, a seca no Sul e no Nordeste quebrou safras de soja, cana e feijão. Em julho de 2012, os preços mundiais médios de alimentos foram duas vezes superiores à média dos 15 anos de 1990 a 2004 e os de cereais, mais de duas vezes e meia.
Fosse apenas mais uma travessura de El Niño, um ponto fora da curva, já seria ruim. Mas é bem possível que seja bem mais do que isso. Climatologistas advertem que grande parte do Canadá, EUA e México está sujeita a um desastre de longa duração, cem anos ou mais. As secas repetidas devidas ao aquecimento podem causar dano permanente à qualidade do solo e às florestas, realimentando o processo.
No Brasil, um estudo da Fipe indicou que, só em Minas Gerais, as mudanças climáticas provocarão perdas líquidas de 155 bilhões a 450 bilhões de reais até 2050. Isso inclui o impacto sobre a agropecuária (incluindo efeitos supostamente positivos sobre a produção de cana-de-açúcar de algumas microrregiões) e a disponibilidade de água e energia hidrelétrica, mas não as perdas por enchentes e eventos extremos. Uma das consequências seria a substituição da agricultura de subsistência do noite de Minas por uma pecuária de baixíssima produtividade, criando um ciclo vicioso econômico e ambiental.
Essas não são as únicas más notícias do lado da oferta. Pragas resistentes a pesticidas se multiplicam e, assim como o petróleo, as reservas de fertilizantes minerais, tais como fosfato e potassa, correm risco de esgotamento. O fósforo, em especial, pode se esgotar antes do petróleo: as reservas conhecidas (em grande parte concentradas no Marrocos e Saara Ocidental) bastam para 60 a 100 anos de consumo, apenas. Os custos da agricultura estarão, portanto, sob pressão crescente nas próximas décadas, ao passo que o crescimento da produtividade tem se mostrado mais lento e o clima menos favorável.
Do lado da demanda, o maior problema não é tanto o crescimento demográfico da população global quanto o das classes médias dos países emergentes e de seu apetite por proteínas animais, principalmente na China. Cada quilo de carne de boi requer 30 quilos de GRÃOS para ser produzido e um quilo de porco, dez quilos de soja. Além disso, o uso crescente de biocombustíveis absorve potenciais alimentos: encher o tanque de um só utilitário esportivo com etanol de milho consome GRÃOS suficientes para alimentar um camponês egípcio por um ano. A demanda de milho para álcool responde por cerca de 20% da colheita nos EUA e, segundo alguns analistas, por uma parcela semelhante do preço. Enquanto a população mundial provavelmente crescerá cerca de 40% até 2050 (de 7 bilhões para10 bilhões), especialistas estimam que a demanda por alimentos aumentará 70%.
O terceiro pé do problema é a especulação. Fundos de hedge e bancos de investimento adquirem em massa opções de compra a preço fixo dos produtos mais suscetíveis de escassez e assim fazem seus preços subirem, para então comprar ao preço antigo o produto supervalorizado e revendê-lo com enormes lucros.
Em 2008, o Goldman Sachs conseguiu um terço dos seus lucros de investimentos em commodities. Segundo consultores citados pelo IATP (Instituto de Agricultura e Política Comercial, dos EUA), 31% do preço do milho em julho de 2008 era devido puramente à especulação, independentemente dos fatores de oferta e demanda. ONGs como Food Watch, Oxfam e World Development Movement têm feito campanha contra esses fundos e conseguiram, neste ano, que cinco bancos (entre eles os alemães Deutsche Bank e Commerzbank e o austríaco Volksbanken) descontinuassem seus fundos de especulação com alimentos, mas isso é apenas uma pequena parte desse mercado de derivativos.
Em tempos de prosperidade, um aumento nos preços das commodities alimentares talvez fosse absorvido sem traumas pelos países desenvolvidos, mas numa época de desemprego generalizado dos dois lados do Atlântico, com alguns países àbeira de uma longa depressão, essa perspectiva começa a parecer assustadora. Além disso, os efeitos sobre os índices oficiais de inflação podem deixar os bancos centrais da Europa e América do Norte ainda mais avessos a promover medidas de flexibilização monetária e aquecimento do consumo, prolongando a recessão.
E se para as hoje atribuladas classes médias dos países ricos, onde os alimentos representam cerca de 10% da cesta de consumo, essa alta é como mais uma flecha em São Sebastião, para as massas dos países pobres, para as quais a comida significa 40% (como no Egito) ou mais dos gastos familiares, um aumento adicional pode ser a diferença entre a vida e a morte. E entre estabilidade e revolução.
Ao lado do aumento dos preços de alimentos em 2008 veio uma série de rebeliões em países africanos e em menor grau no Haiti, Índia e Oriente Médio. A repetição do fenômeno em 2011 trouxe as revoltas da Primavera árabe e também de alguns países africanos - e a prosseguirem as tendências atuais, agitações ainda maiores esperam o mundo nos próximos meses e em 2013. Uma pesquisa de Marco Lagi, Karla Z. Bertrand e Yaneer BarInstitute de Cambridge, Massachusetts, mostra uma correlação direta entre preços de alimentos e revoltas. Povos que toleram regimes autoritários enquanto proporcionam um mínimo de estabilidade às maiorias perdem o medo de se revoltar quando deixa de haver segurança alimentar e sentem que nada mais têm a perder.
Alimentos caros, mesmo se não deflagrarem violência por si mesmos, criam um clima de inquietação no qual basta uma fagulha para incendiar a floresta, como o suicídio de um jovem que em dezembro de 2010 desencadeou a revolução na Tunísia e cujas consequências continuam a sacudir o Oriente Médio até hoje. Segundo esse estudo, as revoltas acontecem quando o índice de preços de alimentos da FAO supera 210. Quando foi publicado, em agosto de 2011, os preços estavam em queda, mas seus autores previram que, se continuassem as tendências de alta no médio prazo observadas desde 2004 e mesmo que nada de excepcional provocasse uma escassez aguda, os preços voltariam a atingir o patamar de instabilidade em julho de 2012, com o risco de não mais voltarem a cair, "comprometendo a segurança de populações vulneráveis de forma ampla e persistente". Na mosca: de junho para julho, o índice geral subiu de 200,8 para 213,1.
Se for considerado o índice deflacionado, o ponto crítico seria atingido em agosto de 2013, mas a verdadeira questão, vale repetir, é que seja atingido agora ou daqui a mais um ano, o maior risco é de que não seja apenas outro pico de escassez, e sim o início de uma conjuntura permanente de insegurança alimentar e instabilidade em grande parte do mundo. 

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