Reflexões do cárcere-parte I - Augusto Jr.
PAZ E BEM COMPANHEIROS!
Podem até prender meu corpo, mas nunca conseguirão
encarcerar o meu espírito crítico-reflexivo.
Carta à comunidade Sul Baiana, especialmente aos operários
(praças) da fábrica... (PM-BA).
Na contramão do que faria a maioria das pessoas jogadas na
prisão, me vi obrigado a refletir sobre esse lugar que aqui estou. Os efeitos
que esperam e os efetivamente causados com a minha condução a esse lugar
nefasto, onde não desejo que os meus piores inimigos passem, se é que os tenho.
Nessas reflexões, cheguei a algumas conclusões, que por questões óbvias não
esgotarei nessa carta. Qual o escopo genérico da prisão? Uns afirmam que essa
serve para arrancar o “mal” do seio da sociedade, outros que é o meio para
penalizar os que andam a margem da lei, haverá ainda os que dirão que essa
serve para ressocializar o apenado.
Todas as assertivas acima podem até está correta, depende de
quem as avalia, mas quero chamar atenção para a gravidade da prisão, ela é
muito mais nociva quando deixa de ser gênero e passa a ser espécie, e sobre
esse prisma quero refletir. A prisão militar do ponto de vista pragmático, ela
difere muito da prisão genérica, é certo que a prisão militar não extirpa “o
mal” da PM, pois muitos estão presos, tantos outros estiveram presos como os
diretores da Aspra e os índices de violência policial só aumentam.
Muitos colegas de farda se não atentarem para minha
reflexão, até poderão me condenar pela afirmativa ao final do parágrafo
anterior, mas isso é um fato. Quero problematizar variáveis que elevam esses
índices de violência policial, e certamente o militarismo é o principal mal
responsável pela violência policial, senão vejamos. Durante os cursos de
formação temos os melhores currículos que para os estudiosos que não vivem o
dia-dia de uma unidade militar, pensam que a nossa Polícia “evoluiu” porque
temos matérias curriculares, tais como sociologia, relações étnico-raciais e de
gênero, disciplina na qual sou pós-graduado pela UESC e não me deram para
lecionar, talvez por me considerarem um subversivo, uma pessoa que aguça a
reflexão e que problematiza os conceitos prontos que vem nos manuais que devemos
seguir. Temos até direitos humanos, olha só que lindo, aliás já dizia Caetano
Veloso “NA BAHIA TUDO É LINDO,” menos a triste realidade da nossa PM.
Objetivamente falando, o que existe é uma celeuma que há 187
anos há na PM-BA e nas demais PMS pelo Brasil afora e que nunca conseguiram
resolver se a sociedade civil organizada não participar de forma mais ativa
desse debate. E sabem por que afirmo isso? Porque esse modelo arcaico de
Polícia Militarizado, que, diga-se de passagem, que só existe no Brasil atende
aos interesses da política, de uma elite econômica e que está no seio da
corporação. Só para ter uma idéia, nesse presídio militar que o qual estou, há
dezenas de PMS presos, todos classe sustentadora da pirâmide administrativa, a
maior graduação é de Sargento. Será que tão-somente as praças trabalham na PM e
por isso exclusivamente eles cometem “ÍLICITOS”? Perguntar não ofende e acho
que na Bahia ainda não é crime, gato escaldado tem medo de água fria.
Como ia falando, essa celeuma arraigada nessa corporação
chamada militarismo é o que há de mais nocivo a sociedade, vou mostrar por que:
Somos considerados pelo nosso estatuto, uma categoria especial de
trabalhadores, quem ouve o termo especial pensa logo que há algo de positivo
nisso, ledo engano, senão vejamos: Por sermos especiais não possuímos direito a
greve, a sindicalização, a filiação partidária (fora do âmbito do sufrágio
universal) e tantos outros direitos que trabalhadores “comuns têm”. Lembrem-se,
tudo isso por sermos militares. Nossa Constituição que rechaça esses direitos,
contradizendo o princípio da isonomia, diz que o salário do PM deve ser pago em
forma de subsídio, o que daria um provento mais digno de forma escalonada a
todos, de modo que os comandantes não estariam submetidos à vontade do governo
para receber determinadas gratificações.
Enquanto alguns dizem que a cadeia dói, eu digo que a cadeia
me faz refletir mais. Pasmem em outro absurdo que vou dissertar, para aqueles
que pensam que a ditadura acabou no Brasil, estão equivocados, e olhem que não
estou falando de governos totalitários que infestam a nossa política. Estou
falando de um cara chamado CPM. Calma! Não é o nosso saudoso Colégio Romulo
Galvão que se tornou o colégio da polícia militar convidando “os alunos
problema” a se retirarem, como se fossem simples assim resolver os problemas da
educação. Mas... Então, esse tal CPM é o Código Penal Militar, e tem seu
parente, o CPPM, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR ambos do ano de 1969, estão
respaldados, embasados, lastreados pelos Atos Institucionais números cinco e
dezesseis, do tempo da ditadura. É possível falar que a ditadura acabou?
Voltando a questão da formação policial, o currículo é bom,
as aulas e os módulos nem tanto, as práticas piores ainda, vejamos por que:
Quando os novos soldados se apresentam os discursos são mais ou menos assim:
“Esqueçam tudo que vocês aprenderam lá fora”.
“Polícia não pode sorrir para civil folgado”.
“Vocês tem o direito a não ter direito, não reclamar do
direito que possui e tem o direito a ficar calado!”
“Seus amigos agora serão outros”. E, tantas outras
afirmações. Após isso, temos a temida semana de adaptação, sabe como é feita
essa semana? Faxina nas unidades militares, muitas pressão psicológica para os
recrutas desistirem e muita corrida com canções do tipo:
“Interrogatório, interrogatório, é muito bom de fazer, você
pega o inimigo e quebra ele até dizer...”
Essa é a mistura perfeita, um monte de meninos e meninas,
hoje em dia, graças a Deus com uma formação intelectual melhor e isso é o que
tem modificado a PM, a maioria sem nenhuma relação com o militarismo. Eles
passam quase 10 meses fazendo faxina nos batalhões tendo poucas aulas teóricas,
que é importante, fazendo várias atividades físicas no sol escaldante, correndo
o dia todo cantando músicas que incitam a violência contra a sociedade, ou
seja, nossos familiares e amigos.
Essas canções são forma de manifestar as ações que deverão
ser adotadas nos serviços, no dia- a- dia, esse é o problema, pois nessa
mistura explosiva todos perdem. Principalmente a sociedade e as praças que
geralmente que na maioria por falta de preparo técnico-profissional, são presos
e levados para o presídio do batalhão de choque, sofrendo ele e a família.
Fiz um breve passeio pela história PM para compreendermos
essa engrenagem chamada PMBA, que joga os seus trabalhadores em jaulas como se
animais fossem. Os problemas não cessam, a coisa é muito mais grave do que
parece, especialmente quando chegamos ao presídio militar. Retomo a discussão
inicial sobre a função dos presídios e fico com a definição de Michel Foucault,
na qual ele afirma que essas instituições utilizam “métodos que permitem o
controle minucioso, das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante
de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade.” Apesar de
está lendo Foucault e concordar muito com ele, quero dizer que em relação aos
diretores da ASPRA, especialmente a minha pessoa, a prisão está surtindo efeito
contrário e agora que a liberdade de mais ninguém está condicionada ao silêncio
da minha fala, não falarei apenas, bradarei para que a sociedade organizada venha
para a luta conosco, pois ela é a maior vítima de uma polícia-política.
Como ia dizendo o efeito da prisão em nós está sendo o
contrário porque ela causa indignação, além de ser ilegal é imoral, ela não
conseguiu nos docilizar e sim revigorar nossas energias para lutarmos ainda
mais contra as injustiças, especialmente tantas que encontramos aqui no
presídio. Com tudo isso, não quero que os meus amigos passem pelo arcabouço o
qual estou. Aos meus queridos colegas, futuros operadores do direito, pensem,
em uma pessoa que foi condenada há quartoze anos já cumpriu nove, tem um
excelente comportamento e nunca teve o direito ao regime de progressão da pena
respeitado. Eu pergunto, onde estão os grupos de Direitos Humanos que pelo que
me consta nunca tiveram aqui? Perguntar não ofende.
Espero que não fique muito mais tempo nesse lugar, mas se
ficar estarei sempre que possível escrevendo as minhas reflexões do cárcere.
Uma pena não poder estar com vocês para exercer a dialética do debate, mas se
um dia me soltarem poderemos refletir e lutar por uma PM desmilitarizada e
melhor para todos.
Hoje finalizo com um trecho de Raul Seixas que nos obriga ir
à luta.
“Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca
escancarada, cheia de dentes esperando a morte chegar...”
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